DESERTO DO SAARA
- Noëlle Francois

- 25 de abr.
- 5 min de leitura
Atualizado: 18 de jul.

Nossa viagem de hoje tem um quê das Mil e Uma Noites. É só olhar ao redor para quase ouvir Sherazade narrando histórias dos tapetes voadores, lâmpadas mágicas e aventuras de Aladdin sob o céu estrelado. E não é para menos, estamos no coração do magnânimo Deserto do Saara. Cada duna parece guardar um segredo antigo esperando para ser descoberto. Difícil não se deixar levar!
A chegada nesse cenário de sonhos começa com as montanhas do Alto Atlas exibindo sua silhueta exuberante, como gigantes estão tocando o céu coberto com seu manto branco de neve, contraste surreal com o acobreado do pôr do sol e o ocre do deserto.
A paisagem ganha ainda mais magia quando um berbere está a nossa espera. Vestido com a essência da elegância de seus ancestrais, sua túnica azulada longa e esvoaçante dança com o ritmo do vento. Na cabeça, o cheche (ou turbante). É sinônimo de proteção, identidade e sabedoria enrolada em metros de tecido. Envolto com técnica quase coreografada, ele cobre o rosto quando necessário, deixando à mostra apenas os olhos profundos.

Nossa primeira parada foi um encontro raro com a essência da vida em harmonia com a terra. A verdadeira imersão na vida de um povo que carrega, com simplicidade e dignidade, uma das formas mais fascinantes e resilientes de existência no Marrocos. São nômades que habitam cavernas escavadas nas rochas, moldando sua rotina aos ritmos da natureza. Muitos vivem da criação de cabras e ovelhas, e migrando conforme as estações, sempre em busca de pasto e água para seus rebanhos. Estar ali, ser recebida por eles e partilhar um chá quente no cenário tão austero quanto acolhedor, foi uma experiência fascinante.
Hora de desbravar as areias do Saara! De imediato, ficou evidente que caminhar nelas não é exatamente algo para iniciantes. De consistência ultrafina, parecendo talco dourado, engolem os pés como se quisessem brincar com a nossa noção de equilíbrio. Para nós, criaturas urbanas acostumadas com o chão firme do asfalto, cada passo parecia uma maratona em câmera lenta. Era como se o deserto dissesse: “Bem-vindos, agora vamos ver do que vocês são feitos!”. Caminhada de aproximadamente uma hora. O rapaz que nos conduziu até nossa tenda falava apenas árabe. A comunicação se dava, então, por gestos ou a sutileza de um sorriso – simples, silenciosa, mas surpreendentemente suficiente. Era uma imersão de quietude enquanto contemplávamos as sentinelas douradas daquele lugar. As imponentes e hipnotizantes dunas se erguiam diante de nós como esculturas vivas moldadas pelo vento.
Se todo cenário já era capaz de deixar qualquer um maravilhado, para mim, o ponto alto dessa travessia foi ter ao meu lado dois camelos me acompanhando. Havia algo de mágico na presença deles, confesso. Eu estava completamente enfeitiçada. Ficava imaginando que em seus olhares serenos, guardavam memórias de rotas antigas, caravanas longínquas sob as mil e uma noites. Seus longos cílios desafiam a fúria do vento e os corpos esculpidos para resistir ao impossível. Eram poesia em movimento deslizando pela areia.

Na vastidão do Saara onde o tempo desacelera, nossa alma se rende. O olhar se perde no imenso infinito. Até que nos espera nossa luxuosa tenda. Somos recebidos com todas as honras da casa, música instrumental típica e chá de menta. Depois do longo dia, um pequeno descanso para recarregar as energias antes de nos deleitarmos com um jantar típico regado com muita festividade e comida tradicional. Uma verdadeira celebração dos sentidos! A tagine fumegava diante de nós, cozida lentamente no clássico recipiente de barro com tampa cônica. Lá dentro, pedaços de cordeiro (ou frango), legumes coloridos e uma sinfonia de especiarias se fundiam, espalhando um aroma inigualável que perfumava o ar frio da noite.
Ao lado, um cuscuz de tempero leve e delicado, acompanhava um majestoso mechoui — cordeiro inteiro assado lentamente no espeto, ou enterrado sob a areia quente, como manda a tradição do Saara. E para completar o banquete, rghaif (ou msemmen), pães folhados e fritos, servidos ainda quentinhos, prontos para mergulhar nos caldos ou serem saboreados com tâmaras e frutas frescas. Como sempre nessas horas, eu me adequando as opções veganas.
Depois do banquete deslumbrante digno dos deuses, estávamos prestes a voltar para nossa tenda quando fomos avisados: naquela noite, uma tempestade de areia se aproximava. Por segurança, nada de sair madrugada afora. Imagine! Me bateu uma inquietude... como aceitar que um fenômeno tão raro e poderoso aconteceria justo ali, diante de mim, e eu teria que dormir?
Mas o cansaço falou mais alto. Acabei adormecendo sob o embalo do vento. Para minha alegria, ao amanhecer, o deserto sussurrava vestígios da tempestade. Fui agraciada com os últimos traços do espetáculo – o céu ainda turvo, a luz filtrada em tons de ouro e cobre, e as dunas redesenhadas, como se um artista invisível tivesse passado durante a noite.
Depois de um café da manhã cheio de sabor, era hora de levantar acampamento. À nossa espera, lá estavam eles: nosso guia berbere, com seu enigmático olhar, e seus adoráveis camelos, prontos para mais uma travessia pelas areias eternas.
Na caminhada de volta, cada passo era uma despedida silenciosa. O vento soprava leve, como se sussurrasse “até breve”. Diante de nós se abria, uma vez mais, aquele horizonte sublime, vasto, digno de reverência.

De repente, a melancolia suave que me envolvia foi bruscamente interrompida por uma cena inusitada. Juro que me senti catapultada para dentro do desenho animado Corrida Maluca, com direito a Dick Vigarista e tudo! O deserto foi tomado por dezenas de carros mini quadradinhos — o icônico Renault 4L.

Era o início de uma travessia surpreendente: um rali solidário e humanitário chamado 4L Trophy. Voltado para estudantes universitários europeus (em sua maioria franceses), o desafio consiste em cruzar o Marrocos em duplas a bordo desses simpáticos carrinhos. Cada equipe leva 50 quilos de material escolar e ajuda humanitária para crianças em situação de vulnerabilidade.
O trajeto é uma verdadeira aventura: começa na França, cruza a Espanha e segue até o coração do Saara marroquino. Lá, os participantes enfrentam dunas, estradas de terra e desafios de navegação – sem GPS, só com bússola e mapa como nos velhos tempos. Um cenário real digno de um roteiro animado, onde solidariedade e espírito aventureiro se encontram em pleno deserto. E eu ali, tendo o privilégio de vivenciar de pertinho.
Finalmente é chegado o momento, um adeus mais difícil que imaginava: meus queridos companheiros camelos. Com eles, aprendi que, mesmo sob o sol escaldante, há delicadeza. São seres sensíveis, e cada passo lento parecia ensinar sobre paciência, presença e respeito. Um último carinho em seu pelo áspero. Sou grata! Pela travessia. Pela companhia. Pela lição silenciosa de que cada animal, grande ou pequeno, merece ser visto com veneração. E ali, entre dunas e céu infinito, renovei meu amor incondicional por todos eles.
Um último olhar, um último suspiro… e o Saara seguia imenso, como um segredo guardado no coração do mundo.
Consultoria e Revisão: Arthur Barbosa











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